CARACTERÍSTICAS DA MANIPULAÇÃO IDEOLÓGICA

O poder instrumentaliza as ideologias na parte em que estas lhe são úteis e as descarta quanto ao resto. Deste modo, recolhe do sistema de ideias de qualquer autor a parte que lhe convém, com o qual frequentemente tergiversa. Assim, o autoritarismo não tomou de HEGEL a parte liberal, e sim a exaltação do Estado; o racismo não tomou do evolucionismo as advertências prudentes, mas ostentou uma ‘ortodoxia’ evolucionista jamais sustentada com seriedade por seus criadores; as tendências teocráticas tomam das espiritualistas tudo o que faz a resignação em função da justiça do ‘além’, esquecendo que quase todas estas afirmam que é seu pressuposto obrar o justo neste mundo; o psicologismo quietista toma de FREUD ou das outras correntes psicanalíticas o seu aspecto de ‘técnica’, mas passam por alto os contextos sociológicos originários etc.

Esta característica da manipulação ideológica tem um duplo efeito: a) gera em alguns a impressão superficial – e infantil – de que os criadores de cada ideologia foram ou são uma espécie de gênios do mal, que vivem buscando o modo de proporcionar argumentos de justificação ao poder. Este infantilismo analítico leva a afirmações absurdas de que KANT era um obsessivo, HEGEL um delirante, FREUD um traumatizado, as religiões ‘ópio’ dos povos’ etc.; b) por outro lado, se originam intermináveis disputas acerca do que se quis verdadeiramente dizer cada autor, corrente ou personagem, sobre a base certa de que geralmente não disse o que o poder pretende pôr em seus lábios. Estas discussões são as que provocam inflamados manifestos demonstrativos de que NIETZSCHE não disse o que HITLER entendeu, que MARX não disse o que STÁLIN o fez dizer etc.

Não devemos esquecer que, em definitivo, não se pode atacar as ‘ideologias’ pelo mero fato de serem o que são, a não ser que aclaremos o que entendemos por ideologia, porque o vocábulo é equívoco. Há vários sentidos pejorativos de ‘ideologia’, que podem ser sintetizados em dois conceitos fundamentais: a) napoleônico, segundo o qual ‘ideologia’ é produto de uma especulação carente de realismo (algo parecido com ‘utopia’); b) o marxista, segundo o qual ‘ideologia’ é sempre uma superestrutura que encobre a realidade. Nós não usamos ‘ideologia’ em nenhum destes sentidos, mas em um sistema não pejorativo, segundo o qual ‘ideologia’ é ‘toda crença adotada para o controle dos comportamentos coletivos, entendendo por crença uma noção que vincula a conduta e que pode ou não ter validez objetiva’ (ABBAGNANO). Neste sentido, que a crença ou sistema de ideias tenha ou não validez objetiva não afeta o caráter de ideologia, mas é uma questão que deve ser esclarecida pela ‘crítica da ideologia’.

Concebida neste sentido não pejorativo, ao campo de ideologia pertencem todas as criações da cultura, desde as mais inteligentes e sublimes até as mais aberrantes. O que acontece é que, por regra geral, o poder recolhe deste jardim as flores mais aberrantes e as ervas daninhas e folhas secas do resto. Mas isto não autoriza a rechaçar toda a cultura universal, nem a crer que cada criador ideológico é um maléfico psicopata que toma a seu cargo a tarefa de justificar os crimes do poder.

Justo é assinalar que a verdade não pode expressar-se por inteiro em seus conceitos, simplesmente porque a verdade é infinita e a conceituação – isto é, a ideologia – é um recurso finito. Portanto, toda referência ideológica à verdade, inevitavelmente, sempre é parcial. Trata-se de um limite inerente à natureza mesma da ‘ideologia’. Quando se pretende superá-la, afirmando ideologicamente ‘a’ verdade absoluta, excede-se o marco das possibilidades humanas, de maneira nem sempre intencional. A única forma de não cair neste erro é a humildade, ou seja, o reconhecimento da parcialidade de todo o julgamento.”

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro: vol. 01 : parte geral / Eugenio Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangela. – 9. ed. ver. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 65/66.


PILOTO

Minha foto
Bacharel em direito pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) - MG. "Um sujeito preguiçoso e frio, algo quimérico, ravoável no fundo, que malandramente construiu para si próprio uma felicidade medíocre e sólida feita de inércia e que ele justifica de quando em vez mediante reflexões elevadas. Não é isso que sou?" A Idade da Razão - Jean-Paul Sartre.

FORÇA MOTORA

TWITTER