Agora que o que me restou foram as sobras do que eu nunca tive, posso, por fim, olhar sem espanto as mentiras sentidas na carne, no suor, aos poucos deixadas para trás. Não que não haja forma erudita para dizê-las - ela existe -, porém não me incomoda a simplicidade: não me têm os sonhos que já sonhei, as roupas que já vesti, os amores que já perdi, as drogas que já usei.
Olho sem espanto como o dia começa e acaba: é como todo o constrangimento pelo fingimento de Andy Kaufman. Acontece que ele não se importava, o meu câncer é outro, não há mantra ou Filipinas, ele não é mortal, embora faça com que tudo se perca. Espero os dias, espero que passem rápido, que eu não os sinta. As sobras do que eu nunca tive, as chaves do apartamento que esperanço explodir junto comigo. Tudo o que me restou, Andy Kaufman, levaram embora: minha mulher, minhas crianças, tudo o que eu nunca tive. O seu câncer era raro e o matou, o meu me perpetua em nada.