V
Apenas elogiou os meus olhos por terem sido os primeiros a se fixarem nos seus sem receio enquanto falava de si mesma com convicção e desespero. Eu não era nada além de um estranho.
- Seus olhos são bonitos.
Após o furto forjei o acaso. Desfiz-me do que não era necessário, guardei comigo somente seus documentos e um cartão com seu telefone. Cortei o cabelo para que não me reconhecesse, marquei um encontro para entregar os documentos que havia encontrado na rua. Quando nos encontramos me agradeceu aliviada, não se importava em perder a bolsa e as quinquilharias que estavam dentro dela. Sentamos em um bar, tomamos alguns chopes, conversamos por horas sem mudar o foco do assunto: ela.
- Já assistiu “Amor em fuga”, do Truffaut?, ela me perguntou, por fim.
- Não, por quê?
Não me escondeu nada desde o primeiro momento. Era atriz pornô, não vacilou em dizer a mim, estranho. Disse que jamais imaginaria isso, não correspondia ao estereotipo de atriz pornô, entretanto não me espantava, para mim é uma profissão tão digna como a medicina, eu disse. Perguntou-me se eu era cineasta, mas a decepcionei, fui muita coisa, hoje sou apenas um escritor.
- Que droga, se você fosse eu seria sua Anna Karina e você meu Godard.
- Como escritor que sou posso lhe dar vida em um romance, ou escrever um roteiro em que você é minha musa.
- De que adianta se não farei parte fisicamente de sua obra?
Conheço um aspirante a cineasta, fomos colegas na faculdade, dirigiu alguns curtas, recebeu alguns prêmios. Há dez anos não nos falamos, mas o tempo jamais foi uma agravante. O assunto tomou outro rumo, sempre girando ao seu redor, sempre meus olhos nos seus. “Uma obsessão”, eu pensava.